Mostrando postagens com marcador adolfo caminha. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador adolfo caminha. Mostrar todas as postagens

domingo, 17 de julho de 2022

Adolfo Caminha – A Literatura como Vingança

 


antigas residências da família de Adolfo Caminha, em Aracati (foto Mauricio Albano)


Nascido no Aracati, a 29 de maio de 1867, Adolfo Ferreira Caminha defrontou-se ainda na infância com dificuldades e aspectos amargos da vida. Em 1877 o Ceará foi assolado por uma das mais terríveis secas da história, e no mesmo ano perdeu sua mãe, e doente, seu pai o mandou para Fortaleza. Em 1883, nova partida, seguiu para o Rio de Janeiro, onde o tio materno o matriculou na Escola Naval para que seguisse carreira na Marinha. Como guarda-marinha viaja pelas Antilhas e pelos Estados Unidos. Durante a viagem redige um diário com anotações e observações sobre as terras vistas, que ressaltará no livro “No País dos Ianques”, de 1894.


Em 1888, já no posto de segundo-tenente alegando razões de saúde, Caminha pediu transferência para Fortaleza, onde serviu no cruzador Paquequer. Imaginou que a capital cearense fosse politicamente mais avançada do que a Corte, o Ceará por exemplo, havia sido a primeira província brasileira a libertar os escravos.




Na década de 1880 a vida literária em Fortaleza vivia um momento de grande atividade. Vários grêmios culturais se formavam em torno de ideais republicanos e abolicionistas e da estética naturalista, brigando jovens escritores. Deles sairiam posteriormente a Caminha, outros nomes que ficaram na história da literatura brasileira, como Manuel de Oliveira Paiva, Domingos Olímpio e Rodolfo Teófilo.      


Quando Adolfo Caminha chegou a Fortaleza, uma questão pessoal o ocupou mais do que a vocação literária e as tendências políticas: em 1889, ano da Proclamação da República, o escritor apaixonou-se por Isabel Jataí de Paula Barros, 19 anos, esposa de um alferes, que abandonou o marido e foi viver com ele.  O escritor foi alvo de críticas tanto da sociedade local como dos próprios colegas da Marinha, onde era também oficial. Chamaram-no de “flagelo dos bons costumes”.  A repercussão do caso foi tão grande que custou até mesmo a carreira do escritor na Marinha. Frota Pessoa, amigo de Adolfo caminha, conta a celeuma:


“ O idílio começou com todas as secretas cautelas, tímido a princípio, mais tarde audacioso, e imprudente. Nasceram ponderadas suspeitas no espírito do marido; cenas conjugais, violentas disputas, tempestuosas explicações lavraram aos poucos a discórdia no casal, e uma certa manhã, ela deserta do lar e vai se abrigar na casa do namorado. Ele não hesita; aceita-a e, em pleno dia, atravessa a cidade com sua amada pelo braço e a deposita em lugar seguro”.


A cidade ficou alvoroçada com o caso; os alunos da Escola Militar querem “vingar a farda do Exército”; as famílias puritanas exigem que o profanador dos bons costumes seja transferido do Ceará: faça suas aventuras onde quiser menos em Fortaleza.


Ao ser praticamente obrigado a deixar o posto na Marinha por causa da repercussão do caso, Adolfo Caminha viu frustrar-se todas as expectativas que o haviam levado a trocar o Rio de Janeiro por Fortaleza. Mais tarde, ele dedicaria o livro Cartas Literárias à sua amada: “Quero que o nome dela fulgure como uma legenda de ouro à primeira página de meu livro.” Amainados os ecos do tremendo escândalo, o escritor vai se reintegrando na vida da cidade.  Mas essa reintegração se processa com atritos e novas inimizades.



Escola de Aprendizes Marinheiros do Ceará, no Jacarecanga (acervo da Marinha)

Para sobreviver arranjou emprego como escriturário na Tesouraria da Fazenda. Mas queria ser escritor, e participava ativamente dos movimentos literários do Ceará. Em 1891 fundou a Revista Moderna e no ano seguinte, participou da fundação da Padaria Espiritual – movimento literário que acreditava na necessidade de educar as massas populares para modificar o Brasil. Mas, em função do casamento irregular, do qual nasceram duas meninas, o ambiente na cidade não favorecia Adolfo Caminha. Em 1893 ele conseguiu transferência para o Rio de Janeiro, como funcionário do Tesouro Federal. Pobre, procurou aumentar seus vencimentos como colaborador do Jornal Gazeta de Notícias. Ainda em 1893, publicou seu romance A Normalista.


A Normalista foi uma espécie de vingança literária de Caminha contra a cidade que o menosprezou, o romance traça um painel crítico implacável da vida em Fortaleza. Acompanhando a trajetória da adolescente Maria do Carmo, o autor desnudou os impulsos mais mesquinhos de tipos e habitantes da capital do Ceará. Através desse olhar de ódio e despreza, conseguiu dar vida a seus personagens, torná-los interessantes e convincentes.


Ao publicar o romance Caminha causou revolta na sociedade cearense da época. O autor expõe cruamente a falta de moral e as baixezas de pessoas influentes que posavam de puritanas, dignos representantes dos bons costumes.


A edição esgotou-se em poucos meses, graças à interferência das pessoas que se sentiram atingidas e que não tinham interesse na divulgação da história. O romancista então deixou de ser editado por muitos anos. Em seu livro “Escritores na Intimidade”, Raimundo Menezes fala sobre o episódio: 


"O autor focaliza em suas páginas cenas e fatos de Fortaleza daqueles tempos, ridicularizando e combatendo certos hábitos e costumes provincianos, quando então descrevera e pintara conhecidos tipos com nomes diferentes, porém, tão bem traçados, que foram prontamente identificados pela população e apontados sob o riso malicioso dos leitores.


Afirma que foi tamanha a celeuma provocada pelo romance que Adolfo Caminha recebeu ameaças de ser chicoteado e mesmo assassinado. Criou-se lhe um ambiente tal, que o escritor se viu na contingência de tomar determinadas precauções para evitar o perigo de ser surpreendido com um ataque à mão armada.


Na opinião unânime da crítica literária recente, o autor vingou-se das desditas que o viver no Ceará lhe proporcionara. Mas Caminha talvez não tenha se dado por satisfeito. É possível que continuasse decidido a causar escândalo e a levar adiante sua vingança literária. Em 1895, dois anos depois da edição de A Normalista, publicou “Bom-Crioulo”. Tema: um amor homossexual que resultaria em assassinato. Vestuário dos personagens: a farda da Marinha do Brasil.


Adolfo Caminha faleceu no Rio de Janeiro, a 1° de janeiro de 1897, antes de completar trinta anos, acometido de tuberculose. Terminava assim a carreira de autor, que ignorado em vida, seria depois redescoberto como um dos nomes mais originais das letras brasileiras.


Obras:


Vôos Incertos (poesia, 1886)

Judite (contos, 1887)

Lágrimas de um Crente (novelas, 1887)

A Normalista (Romance, 1894)

No País dos Ianques (Impressões de viagem, 1895)

Bom Crioulo (Romance, 1895)

Cartas Literárias (Crítica, 1895)

Tentação (Romance, 1896) 


Resumo: Bom-Crioulo



Bom-Crioulo conta a história de Amaro e Aleixo, a partir de uma perspectiva naturalista, isto é, de condenação da homossexualidade. Além disso, traz uma visão determinista, em que o meio corruptor (a Marinha) e a raça (Amaro é negro) determinam as atitudes dos dois personagens. Desse modo, Amaro é assim retratado pelo narrador: “um latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de cafre, desafiando, com um formidável sistema de músculos, a morbidez patológica de toda uma geração decadente e enervada [...]”. Esse marinheiro é chamado de Bom-Crioulo, “na gíria de bordo”.

Ele se apaixona pelo jovem Aleixo e começa a seduzir o rapaz com promessas. Por fim, o grumete se rende após sentir “uma como vontade ingênita de ceder aos caprichos do negro, de abandonar-se lhe para o que ele quisesse”. E o narrador se refere à primeira relação sexual entre os dois desta maneira: “E consumou-se o delito contra a natureza”.

Além disso, Aleixo, um adolescente de quinze anos, branco e loiro, é descrito como tendo formas femininas: “[...] formas de homem tão bem torneadas, braços assim, quadris rijos e carnudos como aqueles... Faltavam-lhe os seios para que Aleixo fosse uma verdadeira mulher!...”.

Bom-Crioulo, então, aluga um quartinho, na rua da Misericórdia, no Rio de Janeiro. É ali que os amantes se encontram quando estão em terra. O quarto é alugado por dona Carolina, uma portuguesa, ex-prostituta e grande amiga de Amaro, pois, em uma ocasião, ele a salvou de um assalto.

No entanto, Carolina, uma mulher quarentona, fica interessada em Aleixo e seduz o rapaz. Após ele ceder ao desejo da mulher, a transformação em seu corpo é visível. Desse modo, o narrador sugere que manter relações sexuais com uma mulher fez com que Aleixo adquirisse características masculinas:

"Estava gordo, forte, sadio, muito mais homem, apesar da pouca idade que tinha, os músculos desenvolvidos como os de um acrobata, o olhar azul penetrante, o rosto largo e queimado. Em pouco tempo adquirira uma expressão admirável de robustez física, tornando-se ainda mais belo e querido".

E quando Amaro descobre a dupla traição, ele mata, de forma violenta, o seu amante. Dessa forma, o narrador tem a intenção de demonstrar a impossibilidade de um final feliz para esse tipo de relação.

No entanto, apesar de ser hoje considerada uma obra racista e homofóbica, Bom-Crioulo tem valor histórico. Afinal, essa obra de Adolfo Caminha é o primeiro romance brasileiro cuja temática principal é a homossexualidade. Assim, apesar do tom condenatório e punitivo, pela primeira vez na história da literatura brasileira, o protagonismo é dado a personagens homossexuais.

 

Fonte principal: A História do Ceará Passa por esta Rua, de Rogaciano Leite Filho, e outras  


                    

sexta-feira, 31 de julho de 2015

A Fortaleza do tempo da "A Normalista" parte 2/2

No romance publicado em 1893, Adolfo Caminha traça um perfil de Fortaleza no final do século XIX. “A Normalista” é apontado como um dos principais representantes do Naturalismo no Brasil.

continuação ....

“O Zuza dava-se muito com o presidente, que também pertencia a uma alta linhagem de fidalgos em São Paulo e fora educado na Europa: um rapagão alegre, amador de cavalos de raça, ilustrado e amigo das mulheres” p.34 


O presidente citado várias vezes no decorrer da história, é Antônio Caio da Silva Prado, nomeado presidente da província do Ceará por carta imperial de 25 de março de 1888. Nascido em São Paulo, de família rica e tradicional, irmão do renomado escritor Eduardo Prado, foi educado na Europa, cursou Engenharia na França e formou-se em Direito pela Faculdade de São Paulo. Caio Prado assumiu o governo do Ceará em 21 de abril de 1888, cercado de admiradores e elogios de simpatizantes, mas com reservas da imprensa local. Ao tomar posse no cargo, revelou todo o seu despreparo e desconhecimento de como lidar com os problemas que assolavam o Ceará. 

“Morava na Rua Formosa  numa casa assobradada e vistosa com frontaria de azulejos, varandas e dois ananases de louça no alto da cimalha, à velha moda portuguesa” p. 34 



A descrição é referente ao local de moradia do coronel Sousa Nunes, que residia com a mulher e hospedava o filho Zuza, quando este vinha ao Ceará. A Rua Formosa é a atual Rua Barão do Rio Branco, uma das mais antigas de Fortaleza, famosa por seus sobrados e residências de alto luxo. 

“Passava um enterro caminho do cemitério. Quatro gatos pingados,  de preto conduziam o caixão cujos galões de fogo reluziam ao sol” p.44

Antigamente os enterros eram solenes e a pé. O caixão do falecido era carregado por amigos, parentes ou pelos “gatos pingados”, homens contratados para levar o defunto ao cemitério. Vestiam-se com casacas compridas e negras, uma fita amarela a tiracolo, calças com listas vermelhas, cartolas altas de oleado, de abas enroladas. Somente homens, todos de preto, acompanhavam o féretro. Se o defunto era pessoa importante, o cortejo terminava com uma banda de música tocando peças fúnebres.

“Esse José Pereira, fisicamente, dir-se-ia irmão gêmeo do Berredo, da Escola Normal... Começara a vida pública no Correio, como carteiro e agora ai estava feito redator da Província” p.54

No tempo da normalista”, o Correio funcionava no térreo do prédio da Assembleia Provincial, na Praça General Tibúrcio, onde ficou até 1895. No dia 9 de março desse ano, mudou-se para o prédio da União Cearense, localizado na Rua Dr. João Moreira, na Praça dos Mártires.


“Onde fica a tipografia do jornaleco? Na Rua de São Bernardo, creio eu ...” p. 56

A Rua de São Bernardo que recebeu esse nome por causa da Igreja de São Bernardo localizada na esquina com a Rua Senador Pompeu, é a atual Pedro Pereira.

“José Pereira derreou-se na cadeira de espaldar, um velho traste que fora da Perseverança e Porvir...” –  p.58



A Sociedade Perseverança e Porvir era uma entidade voltada para a causa abolicionista, instalada no dia 28 de setembro de 1879 em homenagem declarada ao oitavo aniversário da Lei do Ventre Livre. 

“Ao dobrar a Rua da Assembleia, o Zuza parou, à espera que o bonde passasse...” – p. 59
A Rua da Assembleia é a atual Rua São Paulo

“Entregou-a ela mesma, no Passeio Público, numa quinta-feira à noite, uma belíssima noite de luar. A Avenida Caio Prado tinha o aspecto fantástico...”p.64

O Passeio Público era dividido em três planos: No inicio do século XX, foi rodeado de grades artísticas e dividido por classe social. A elite frequentava a Avenida Caio Prado, de frente para o mar; A classe média frequentava a parte central denominada Avenida Carapinima, e os pobres ficavam na Avenida Padre Mororó. É possível que no decorrer da história, a avenida não se chamasse ainda Caio Prado, nome dado em homenagem ao presidente da província falecido em 1889 e personagem do romance. 

“Era voz geral na cidade que o estudante estava disposto a casar com a normalista mesmo contra a vontade de seus pais e a despeito da burguesia aristocrata que lamentava por sua vez tamanho “desastre” . um rapaz fino, com um futuro invejável diante de si, estimado, amigo do presidente, casar-se com uma simples normalista sem eira nem beira! E em toda parte, desde o Café Java até o Palácio da Presidência comentava-se, discutia-se ruidosamente assombroso acontecimento...”  p.76



O Café Java era um dos quatro cafés localizados nos cantos da Praça do Ferreira. Ali nasceu a ideia de se criar, em 1892, a Padaria Espiritual. O Java data da década de 80 do Século XIX, e foi demolido pela reforma da praça em 1925.

“No quarteirão compreendido entre a Rua das Flores e a do Senador Alencar...” p.80
A Rua das Flores é a atual Rua Castro e Silva

“A verdadeira casa do Loureiro, o ninho em que ele ia passar a lua-de-mel com a Lídia, era no Benfica...” – p 81 

O Benfica ficava nos arrabaldes de Fortaleza, na estrada do Arronches, atual Parangaba. Era um lugar de muita vegetação, com muitos sítios e chácaras e famoso por suas fontes de águas limpas.

"Agora, uma semana depois, num sábado, toda a gente falava no casamento da Campelinho como d’um acontecimento extraordinário... Às sete horas dois foguetes queimados defronte da casa da viúva Campelo, no trilho, deram sinal de que os noivos iam sair. Com efeito, daí a pouco surgiu na calçada a Campelinho caracterizada em noiva, afogada em seda branca, com uma auréola de imortalidade, cabisbaixa, pisando devagar, de braço dado com a firma Carvalho e Cia... Logo após vinha o Loureiro com a viúva, em seguida Maria do Carmo e um rapaz empregado do comércio... O cortejo desfilou a pé, ante a curiosidade indiscreta da vizinhança que se debruçava nas  janelas para ver melhor a noiva... Cerca de uma hora depois voltaram os noivos com o seu bizarro cortejo de amigos e amigas, mas agora vinham os dois na frente abrindo caminho, conversando baixinho, com um belo ar de velha familiaridade"  P. 82/3

Descrição do cortejo de casamento daqueles tempos. A exemplo dos enterros, noivos e convidados também seguiam a pé, exceção para as famílias mais abonadas que geralmente dispunham de transporte próprio (carroças puxadas por cavalos ou burros).
  
"Afinal de contas, depois de alguns segundos, fez-se a ordem e o casamento seguiu em paz, direto à Igreja do Patrocínio.” P. 83


“Nisto adormeceu e logo tornou-lhe a aparecer em sonho o negro Romão com as calças arregaçadas, um barril na cabeça, a gritar – arre corno! Cercado de garotos que lhe atiravam pedras.... depois o preto deixou cair o barril, que se derramou, inundando a calçada de imundícies, e ei-lo montado num cavalo magro, a fazer de palhaço de circo, uivando uma porção de asneiras, que a molecagem replicava sempre com o mesmo estribilho, a uma voz: – é sim sinhô! “ p.90



O sonho de Maria do Carmo com o negro Romão está relacionado a forma de saneamento doméstico praticado por largos anos em Fortaleza. De acordo com Raimundo Girão, em "Geografia Estética de Fortaleza" o Romão era um antigo escravo bestializado pela miséria. Imundo, andava meio curvado, apoiado a uma bengala, rosnando sempre nomes feios. Sustentava-se de cachaça e comia vísceras cruas, misturadas com farinha de mandioca, no fundo do seu fétido chapéu de palha. Quando ferrava no sono em um vão de porta, a mulher e as filhas, que o seguiam à distância, vasculhavam lhe os bolsos em busca dos níqueis e cobres que porventura tivesse sobrado da aguardente. Romão era um quimoeiro. Como naquele tempo não tinha esgotos, era usual em quase todas as residências, juntar os detritos fecais em grandes barris de madeira, conhecidos por “quimoas”, e mandar esvaziar o infecto conteúdo nas proximidades da praia. A tarefa era realizada pelos quimoeiros, que carregavam na cabeça sua malcheirosa carga. Por onde passavam, havia grande correria de homens, mulheres e crianças, bater de portas e janelas, todos procurando evitar o encontro com os carregadores. E quando cansados ou bêbados, (e eles bebiam muito para poder encarar o serviço), descansavam o barril nas calçadas ou num batente que lhes servisse de apoio. De onde quer que partissem, os quimoeiros passavam obrigatoriamente pela frente da Santa Casa, desciam o calçamento que dava no velho gasômetro, rumo a praia (que seria hoje a Praia de Iracema). Ali chegando o fétido carregamento era atirado ao mar, o barril era lavado, e o homem voltava, passando pela antiga Rua Formosa.
  
“Seguiram para a Praça do Ferreira a tomar o bonde de Pelotas” p.98

  
João da Mata e Maria do Carmo iam para o Benfica visitar a amiga Lídia. Para tanto rumaram para a Praça do Ferreira, ponto de partida de todas as linhas. Os bondes eram movidos a tração animal, trafegavam quase o dia inteiro, das 6 da manhã às 9 da noite. O itinerário do Bonde de Pelotas tinha inicio na Praça do Ferreira e terminava na Praça de Pelotas (atual Clóvis Beviláqua) junto à Rua General Sampaio. 

“ e ir viver na Santa Casa de misericórdia, curando os enfermos...” p. 103

A Santa Casa de Misericórdia foi inaugurada no ano de 1861, no mesmo local em que se encontra até hoje, em frente ao Passeio Público. Foi o primeiro hospital de Fortaleza e o único hospital público até o começo dos anos 30. A Santa Casa foi o principal espaço de tratamento da população pobre, desde que os doentes não estivessem acometidos por moléstias contagiosas. Para estes foi criado o Lazareto da Lagoa Funda, localizado à cerca de 7 km do centro.

“Depois, enquanto o vapor singrava em direção ao Mocoripe, começou a examinar a costa cearense, como se nunca a tivesse visto de fora, da tolda de um navio. Viu passar diante de seus olhos arregalados todo o litoral de Fortaleza, desde o farol de Mocoripe até a Ponta dos Arpoadores...
primeiro o farol, lá muito longe, esbranquecido, cor de areia, ereto, batido pelos ventos; depois a extensa faixa de areia que se desdobra em ziguezague até a cidade; a praia alvacenta e rendilhada de espumas. Em seguida o novo edifício da Alfândega, em forma de gaiola, acaçapado, sem arquitetura, tão feio que o mar parece recuar com medo à sua catadura.”   
“noutro plano, coqueiros maltratados pelo rigor do sol, erguendo-se da areia movediça que os ameaçava soterrar, uns já enterrados até a fronde, outros inclinados, prestes a desabar; o torreão dos judeus Boris, imitando a torre de um castelo medieval, cinzento e esguio; o seminário por trás, no alto da Prainha, com suas torres triangulares; as torres vetustas e enegrecidas da Sé; o Passeio Público com seus três planos em escadarias; a S.C. de Misericórdia, branca, no alto; o Gasômetro; a Cadeia; e por ali afora o arraial Moura Brasil, invadido pelo mar, reduzido a um montão de casebres trepados uns sobre os outros...” p.109



Pressionado pelo pai, que não queria o namoro do estudante com a normalista, Zuza embarca para Recife, e observa com atenção, aparentemente pela primeira vez, os detalhes da costa cearense sob a perspectiva mar/terra. Nos trechos acima está todo o panorama da velha Fortaleza do tempo de Adolfo Caminha e que se prolongou até a década de 1930, com pouquíssimas modificações.  

“Maria do Carmo não podia se conformar com a ideia da morte do presidente, o homem da moda, o querido das moças, o grande amigo do Ceará, que tantos benefícios fizera a essa província, mandando construir açudes no sertão, reconstruindo o Passeio Público, ativando as obras do porto, facilitando a emigração, prodigalizando esmolas e finalmente introduzindo em Fortaleza certos costumes parisienses, como o sistema de passear a cavalo a chouto, de aparar a cauda aos animais de sela.” P. 113

Adolfo Caminha esboça o retrato do antepenúltimo presidente da província do Ceará,  Caio Prado. Para completar a tragédia da falta de chuvas e acompanhando as secas periódicas, proliferou no Ceará uma violenta epidemia de febre amarela, agravando o quadro de miséria para milhares de pessoas. Com a epidemia instalada no Estado, o próprio presidente foi uma das vítimas; acometido da doença, faleceu em 25 de maio de 1889.


 Uma das poucas fotos em que aparece o então presidente Caio Prado, numa reunião em uma chácara no Benfica. O presidente é o número 14.  

“Os sinos da Sé começaram a dobrar a finados...” p. 115

Era costume os falecimentos serem anunciados pelos sinos da Sé. A partir daí sabia-se da morte de algum morador por uma cortina preta, com uma cruz prateada no centro, posta na fachada da casa do falecido. O costume foi abolido em 1878 porque a morte de alguém não afligia mais a cidade, em razão do grande número de vítimas das secas e das epidemias. 

“O enterro do presidente passava na esquina, caminho do cemitério. Maria do Carmo assistia com a respiração suspensa e um nó na garganta, o desfilar do préstito. O caixão levado por seis homens de preto, coberto de galões dourados debaixo da chuva miúda, o acompanhamento – uma comparsaria dispersa de gente de todas as classes de chapéu-de-chuva-aberto, marchando resignadamente ao som da música do batalhão que tocava à funeral”. P.116

mais uma vez a descrição de um enterro antigo com a presença dos “gatos pingados”, homens contratados para carregar o caixão, todos vestidos com roupas especificas para essa ocasião. Como se tratava de gente importante, nesse caso, havia o acompanhamento de uma banda de música.  

“durante o jantar declarou que a Maria, no dia seguinte domingo, iria passar uma semana ao Cocó, em casa de tia Joaquina, conhecida como velha dos cajus”. p.119


Grávida do padrinho João da Mata, Maria do Carmo cumpre o destino de mulheres solteiras que engravidavam: ser confinada em algum lugar reservado e distante dos olhos de parentes e vizinhos até o nascimento da criança. O Cocó foi o lugar escolhido para Maria do Carmo ter o filho. Era distante e quase despovoado. Segundo nota do editor, ficava a cerca de uma légua de Fortaleza. A tia Joaquina e o marido mestre Cosme, moravam numa casinhola de taipa, dentro de um largo cercado de pau-a-pique plantado de cajueiros, todo verde no inverno, com um grande poço no centro, cavado toscamente, e ao fundo do qual sangrava um veio de água cristalina.

“A esse tempo um grande acontecimento preocupava toda a cidade. lia-se na seção telegráfica da província as primeiras noticias sobre a proclamação da república brasileira.... O Ceará estremecia a esses boatos. Grupos de militares cruzavam as ruas, ouviam-se toques de corneta no batalhão e na Escola Militar. Tratava-se de depor o presidente da província, um coronel do exército. Os canhões La Hitte, da fortaleza de N.S. d’Assunção, dormiam enfileirados na Praça dos Mártires, defronte ao Passeio Público, guardados por alunos de patrona e gola azul... “p.136

A notícia da Proclamação da República chegou por telégrafo, no final da tarde do dia 15 de novembro. O Ceará era então governado pelo coronel Jerônimo Rodrigues de Moraes Jardim, no poder havia apenas um mês. Ao tomar conhecimento da notícia, o presidente promoveu reuniões com os comandantes das forças militares, auxiliares e chefes políticos locais, pedindo o auxílio de todos para a manutenção da ordem pública. Moraes Jardim foi convidado a aderir à república, mas relutou talvez em razão de não acreditar que o Império pudesse cair tão facilmente, como os fatos davam a entender. No dia 16, oficiais do 11° Batalhão de Infantaria, alunos do Colégio Militar e membros do Centro Republicano se reuniram na Praça dos Mártires (atual Passeio Público) para garantir a adesão do Ceará ao novo regime – deliberaram pela deposição do presidente Moraes Jardim. A aglomeração, sob o olhar curioso e espantado da população de Fortaleza, deslocou-se a seguir em direção ao palácio do governo. Chegando à sede do governo, a multidão intimou o último presidente monarquista do Ceará a entregar o poder, ao que Moraes Jardim não ofereceu  nenhuma resistência. Depois por indicação do major Manuel Bezerra de Albuquerque, professor do Colégio Militar, foi indicado para governar a província Luís Antônio Ferraz, comandante do 11° Batalhão.

pesquisa:

Caminha, Adolfo. A Normalista. Rio de Janeiro: Série Bom Livro - Editora Ática 10a. edição, 1994
Farias, Airton. História do Ceará/Airton de Farias. Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2009 - 5a. edição. 400p. 
GIRÃO, Raimundo. Geografia Estética de Fortaleza. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1959.
GIRÃO, Valdelice Carneiro. A Emigração Cearense no Governo Caio Prado (1888-1889). Fortaleza: Revista do Instituto do Ceará, 1990.
as demais informações foram retiradas do site Fortaleza em Fotos, onde constam os os nomes de todas as fontes.
Fotos IBGE, Aba Film, Álbum de Vistas do Estado do Ceará - 1908, Nirez e Brasiliana Fotográfica.