quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Os Casamentos nos Anos Dourados

Até os anos 50, as cerimônias religiosas de casamentos eram voltadas para a liturgia. A preocupação com decoração do templo e recepção para convidados eram coisas eventuais e ficavam em segundo plano. Uns poucos vasos com flores resolviam a ornamentação da igreja. Quanto a recepção, consistia, de modo geral, num jantar na residência dos pais da noiva ou mesmo uma reunião mais simples, onde eram servidos bolos e guaraná. Outra regra quase generalizada dizia respeito à igreja, por tradição a sede da paróquia dos nubentes, onde não raro eles haviam sido batizados e também feito a primeira comunhão. Em muitos casos, o padre oficiante da cerimônia era amigo da família e até casara os pais dos noivos.

Casamento de Yvonne Gadelha e Mário Vieira 

Dois casamentos, no entanto, quebraram essa tradição, uma vez que foram celebrados numa igreja que na ocasião ainda não havia sido sagrada como matriz, sede paroquial, no caso, a Igreja do Coração de Jesus, dos frades capuchinhos, a antiga igreja dos Albanos, construída pelo Barão de Aratanha para seu filho frade, mais tarde bispo, Dom Xisto Albano. Era então uma igreja elegante, suave, construída sobre um elevado pedestal, com escadarias, toda contornada por colunas onde se postavam os doze apóstolos, moldados em ferro e em tamanho natural. 



Quanto aos dois casamentos realizados ali, pelo seu ineditismo chamaram a atenção e se tornaram notícias além dos limites da capital. O primeiro foi dos jovens Artemilce Guedis e Glauco Lobo, realizado no final dos anos 40. A noiva residia na esquina das ruas Assunção e Clarindo de Queiroz, distante cerca de três quarteirões daquela igreja, e o acontecimento ultrapassou a barreira da realidade adquirindo conotações lendárias. 

casamento da Rainha Elizabeth

Dizia-se que o vestido da noiva era uma reprodução do modelo usado pela então princesa Elisabeth da Inglaterra, que casara recentemente com o Duque de Edimburgo. Segundo ainda os mesmos comentários, a noiva teria sido conduzida até a porta da igreja numa carruagem, também cópia do veículo que conduzira a futura rainha da Inglaterra. Conta-se ainda que um gigantesco tapete vermelho cobria o calçamento, desde a porta da residência dos pais da noiva até o altar da igreja, algumas centenas de metros adiante. 

Outra cerimônia de casamento realizado no Coração de Jesus foi o da miss Emília Correia Lima, quando ainda havia todo um clima pelo fato da noiva ter sido eleita Miss Brasil. Daí, seu enlace com o oficial do Exército Santa Cruz Caldas ter parado a cidade naquela tarde-noite de 1956. Uma compacta multidão encheu o adro da igreja e toda a praça José Júlio para ver a mais linda noiva de todos os tempos.

Mas era a Igreja do Patrocínio a preferida pela elite de Fortaleza, notadamente a população da Aldeota que ainda não dispunha de uma igreja-matriz. Padre Nini pároco do Patrocínio tinha esmero pelo templo. Tudo ali era bonito, limpo e do maior bom gosto e as famílias escolhiam aquele santuário para o casamento de seus rebentos.

A Igreja do Carmo, pelo seu aspecto monumental também era bastante requisitado para bodas, especialmente entre as famílias mais tradicionais. Outros fatores que faziam daquela matriz uma das preferidas para casamentos, era sua localização, em meio a uma praça e tendo à sua frente uma das mais belas artérias de Fortaleza, o Boulevard Duque de Caxias, que naqueles idos era essencialmente residencial, com aristocráticas mansões, onde residiam famílias antigas e conservadoras. 

As cerimônias de casamento eram realizadas normalmente à tarde, algumas mais simples pela manhã e, pelo que consta, o enlace de Emília Correia Lima foi o primeiro celebrado em hora mais avançada, no início da noite. Só na década seguinte, nos anos 60, teve início a prática de cerimônias noturnas. 

A mudança começou quando a ex-primeira dama do Estado Olga Barroso, fez o cerimonial do casamento de sua filha às 10 horas da noite, num cenário surrealista que era a Catedral em construção, com iluminação por archotes, o que deu ao evento um toque medieval. 

A partir dai, tudo mudou, não apenas no que diz respeito ao horário das cerimônias, mas principalmente no que tange as produções, cada cerimônia mais mirabolante do que o anterior, um show de efeitos visuais e sonoros, superando o sentido da liturgia. Nem importava se os noivos seriam felizes ou se ficariam juntos até que a morte os separasse, importante mesmo era que todo mundo comentasse o espetáculo produzido.

Extraído do livro
Os Dourados Anos, de Marciano Lopes.
fotos do arquivo Nirez e do Livro "Ideal Clube - história de uma sociedade          

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Pici e Cocorote - As Bases Americanas que Agitaram a Cidade


A Base Aérea do Pici construída entre os meses de julho e agosto de 1941, não levou mais do que 45 dias para ter sua pista para pouso e decolagens de aviões e alguns pequenos alojamentos concluídos. Também não teve um papel preponderante no que diz respeito à presença de aviões norte-americanos, em razão das dificuldades no transporte de combustível, armamento e munições.

Blimps estacionados na Base do Pici

A Fortaleza dos anos 40 era muito tímida. A maior obra do Governo Federal naquela época era a construção do Porto do Mucuripe. Em março, em razão de informações dando conta de que as obras estavam sendo tocadas com muita lentidão, o governo enviou o general João Mendonça de Lima, Ministro da Viação e Obras, que desembarcou num hidroavião da Condor, na Barra do Ceará, para inspecioná-las.

Naquela época praticamente não existiam ruas pavimentadas na cidade. Raras eram as recobertas com paralelepípedos. O areal ainda predominava sobre o número de ruas minimamente caçada com pedras toscas.

Nesse ínterim, os americanos, que já haviam feito um mapeamento da malha urbana da cidade, resolveram construir vias de acesso para suas bases aéreas a fim de garantir um melhor acesso aos seus veículos de carga e a consequente decolagem de seus aviões. Partiram, então para a construção de uma grande avenida – partindo das proximidades da Faculdade de Direito até onde ficava o Bar Avião – de concreto armado, com máquinas especiais trazidas dos Estados Unidos, para aguentar o tráfego dos seus veículos pesados, e os caminhões-tanques. Uma delas foi a atual Avenida João Pessoa/Avenida da Universidade*.

Avenida João Pessoa
Rua 15 de Novembro, única via de acesso ao Aeroporto do Cocorote
Quando o bairro Montese ainda era chamado de Pirocaia, a rua era apenas uma estrada margeada de cerca de arame farpado, desde a Avenida João Pessoa ate um sítio de propriedade da família Monteiro. Com a construção do campo de pouso do Cocorote em 1942, ampliado no ano seguinte, aquela propriedade foi cedida aos americanos aquartelados em Fortaleza.  Uma capelinha dedicada a Nossa Senhora Aparecida, existente ali, foi demolida.  De posse dos americanos, a antiga estrada foi pavimentada em pedra tosca revestida de cimento, passando a servir de único acesso ao aeroporto, durante e após a guerra até a construção da Avenida Luciano Carneiro no começo da década de 60. Com um quilometro de extensão, começando na Avenida João Pessoa, ali onde se localiza o Bar Avião, terminava no portão que dava acesso também à Base Aérea de Fortaleza. Atualmente ela termina na Avenida Carlos Jereissati. 

As atividades na base do Pici, onde aparentemente teria ocorrido uma precipitação na sua construção, devido a sua localização e quase inacessibilidade de veículos pesados – caminhões-tanques – foram aos poucos sendo esvaziados.

Os pilotos reclamavam das correntes de vento quando pousavam. A pista foi inaugurada quando estava com apenas 75% da sua extensão pronta para uso, para acolher um avião americano B-17 que estava perdido de sua rota original. A permanência da aeronave em Fortaleza foi de apenas 30 minutos. A presença da aeronave nos céus de Fortaleza causou pânico na população em função das notícias que chegavam da Europa. O temor era causado pela possível participação brasileira na Segunda Guerra Mundial.


O B-17 chamado de Fortaleza Voadora foi um avião bombardeiro quadrimotor construído pela Boeing, durante a Segunda Guerra Mundial, para a Força Aérea dos Estados Unidos. Era uma aeronave potente, de grande raio de ação, capaz de provocar grande destruição em alvos inimigos e com grande capacidade de autodefesa. Quando a pista do Pici ainda estava em  fase final de construção, foi prematuramente inaugurada por uma aeronave desse tipo, que precisou pousar por se encontrar perdida em relação a sua rota original. O sobrevoo deste avião de grande porte  causou pânico em Fortaleza. 

A base do Pici deixou de operar em abril de 1942, quando todo o tráfego aéreo já tinha sido desviado para a nova – mais moderna e mais segura, sem problemas de abastecimento de combustível e de ventos fortes – a base do Cocorote. No seu lugar passou a funcionar a base aeronaval de Fortaleza, com três dirigíveis pousados no Pici.

O esquadrão Z9/41 com os três dirigíveis pousados na Base do Pici. Depois os três Blimps foram transferidos para São Luís - MA. 

No Cocorote, os americanos construíram além de uma excelente pista de pouso (que hoje faz parte do Aeroporto Internacional Pinto Martins), um hospital com mais de 50 leitos, hangares, galpões para aviões, alojamentos, oficinas, capela, arruamento, cassino, residência para os oficiais superiores e para o comandante, e até um clube, o B-25. Estima-se que mais de 500 árvores entre mangueiras, cajueiros e coqueiros foram cortados para a construção desse complexo. A Base do Cocorote – que seria uma corruptela do inglês Coco Route,  Rota do (rio) Cocó – acabou virando apenas Cocorote.

 Base Aérea do Cocorote, atual Base Aérea de Fortaleza, no Alto da Balança 

A Alemanha protestou contra a instalação de bases americanas em território brasileiro como ponte para Dacar, na África, qualificando a iniciativa americana, como uma nítida violação da neutralidade. O protesto foi ignorado pelas autoridades brasileiras. De fato, o Brasil só entrou na guerra em agosto de 1942.

Os aviões americanos praticamente não paravam de voar, porque estavam sempre em missões, fazendo o patrulhamento aéreo do litoral das regiões Norte e Nordeste, do Aeroporto de Ipitanga, em Salvador, de Valdecans, em Belém, na expectativa de identificar e aniquilar eventuais aeronaves ou embarcações inimigas. A base área de Parnamirim, em Natal, era a mais movimentada e importante de todas, exatamente por sua posição privilegiada. 

Um Blimp em pleno procedimento de voo no Pici. Ao fundo, um grupo de soldados para atracá-lo. Era terminantemente proibido fotografar  os Blimps em operações de pouso e decolagens. As raríssimas fotos que mostram os dirigíveis nessas funções são do arquivo particular de José Maurício Rabelo Sucupira. 

Na base do Pici funcionava o posto de patrulhamento costeiro, a cargo da Marinha, com os blimps – os chamados Zeppelins – que  marcaram época sobrevoando a cidade. Naquela época o frenesi da guerra era muito grande. Para completar, o barulho dos aviões, sobrevoando a cidade, impregnava o quadro de inquietação, incomodando muita gente. Nesse burburinho, os acidentes eram inevitáveis, correram vários, alguns dos quais muito graves, com mortos e feridos. Raramente eram noticiados pela imprensa local.

Em 1942 foi realizado o primeiro blackout absoluto, apagando-se todas as luzes da cidade, num exercício de comportamento a ser seguido, simulando um ataque aéreo à cidade. A “Gazeta de Notícias” publicou uma nota da Secretaria do Serviço de Defesa Passiva Antiaérea, de 16/12/1942, estipulando que, em função do Estado de Guerra, o movimento nas ruas deveria ser encerrado às 22 horas; a iluminação pública não seria permitida a partir desse horário, principalmente na praia e no centro da Cidade.

Dentre as normas de blackout, por tempo indeterminado, as que se referiam às residências, determinavam que todas as vidraças, venezianas, etc, externas, deveriam ser cobertas com papel ou fazenda preta, ou reforçadas com madeira, de modo que não houvesse filtração de luz. Na noite de Natal daquele ano, a Tradicional Missa do galo deixou de acontecer à meia-noite em razão das regras rígidas de iluminação noturna. A obrigatoriedade de cumprimento das leis do blackout permaneceu em vigência até o dia 1° de dezembro de 1943. 

Extraído dos livros
Caravelas, Jangadas e Navios – uma história portuária, de Rodolfo Espínola
Ideal Clube – história de uma sociedade – memórias, documentos e evocações, de Vanius Meton Gadelha Vieira

* segundo outros historiadores, a Avenida João Pessoa recebeu pavimentação de concreto em 1929, no governo do presidente Washington Luís.